Portanto vós orareis assim: Livro de Oração, Diretório de Culto e a formação orante da tradição presbiteriana
por Natan Cerqueira1
1. INTRODUÇÃO
O “modo como Deus é devidamente cultuado” foi o primeiríssimo motivo que o reformador João Calvino (1509 – 1564), escrevendo em 1544, elencou para demonstrar a necessidade de reformar a Igreja – ou, em suas palavras, o primeiro dos “males que nos obrigam a buscar remédios” (CALVINO, 2018, posição 2921). O culto é tão basilar dentro do contexto da reforma calvinista que esse assunto ainda é motivo de polêmica hoje. Ou seja, mesmo removidos da Genebra calvinista por meio milênio e um hemisfério, o tema ainda nos é muito caro e por ele estamos nós dispostos a lutar; nós, presbiterianos, filhos da expressão da reforma calvinista que foi moldada pela Confissão de Fé de Westminster, a expressão que “se desenvolveu por intermédio dos puritanos, especialmente Jonathan Edwards, e mais tarde pelos grandes teólogos de Princeton do século XIX e por Charles Hodge e B. B. Warfield no começo do século XX.” (KAISER; SILVA, 2014, p. 241), cuja teologia (a de Princeton) “modelou a prédica, a polêmica e a ação pastoral dos introdutores presbiterianos da Reforma no Brasil” (RIBEIRO, 1991, p. 201).
Embora haja expoentes de nossa mesma tradição que atribuam essa verve de luta a uma incontinência de “impulsos marciais” (FRAME, 2003, p. 146), o que não se pode negar é que o zelo por se estar em harmonia com o ensino da escritura é o grande fator que move a teologia presbiteriana de culto; no contexto brasileiro, inclusive.
Isso não apenas em sua infância institucional, como quando da confecção do “Manual de Culto”, no início do século XX (HAHN, 1989, p. 196-197), ainda publicado pela Editora Cultura Cristã, e do “Livro de Ordem das Egrejas Presbyterianas do Brasil” (1924), mas até hoje. Veja-se, por exemplo, em 2011, quando a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPI) lançou a 2ª edição, revista e ampliada, de seu excelente “Manual do Culto”, no qual, antes de qualquer liturgia ser apresentada, faz-se uma muito útil exposição sobre a estrutura normativa do culto e o porquê da importância, dinâmica e elementos do culto (MANUAL DO CULTO DA IPIB, 2011, pp. 15-33). Um ano antes, em 2010, uma equipe especialmente comissionada pela Igreja Presbiteriana do Brasil produziu uma “Carta Pastoral e Teológica sobre Liturgia”, na qual a teologia de culto foi extensivamente explicada. Essa demanda não veio dos estudiosos do assunto, mas, sim, em resposta a assuntos “enviados várias vezes ao Supremo Concílio e sua Comissão Executiva” (CARTA LITÚRGICA, 2010, seção 3), assuntos estes que afetavam diretamente a vida das comunidades: dança litúrgica, palmas e aplausos. Ou seja, demanda popular.
Essa demanda popular por assuntos de culto público encontra antecedentes históricos antigos, pois o início da revolta dos presbiterianos escoceses é tradicionalmente datada da reação pública negativa à leitura do Livro de Oração Comum durante o culto (DRURY, 1901, p. 95) da Igreja de Santo Egídio, em Edimburgo, onde João Knox fora pastor meio século antes e pregara os ideais da Reforma por anos. Mesmo estudiosos anglicanos admitem que William Laud (1573 – 1645), então Arcebispo da Cantuária, fizera um desserviço ao Livro de Oração ao obrigar sua leitura “antes de cada sermão ou preleção” (SMITH, 1927, p. 30). Vê-se que esse zelo e forma do culto resultante da influência calvinista nas Ilhas Britânicas, que chegou a nós pelo tipo de vida eclesiástica anglo-saxã que nos foi impressa pelas missões americanas (BRAGA, 1932, p. 104), é algo próprio de nossa identidade.
Com isso em mente, há como nós, presbiterianos brasileiros no século XXI, em nossa busca contínua por prestarmos culto a Deus de modo cada vez mais fiel, aprendermos algo para o nosso culto hoje com um tipo de documento que nossos pais rejeitaram quase 500 anos atrás? Meu intuito neste trabalho é sugerir que a resposta é positiva. Longe de considerar um abandono da nossa herança e identidade, buscarei apresentar, em breve apanhado histórico do cristianismo britânico, que a relação entre o Livro de Oração Comum (LOC) e o Diretório de Culto de Westminster (DCW), juntamente com os desenvolvimentos posteriores da compreensão litúrgica da tradição presbiteriana na figura de seus manuais de culto, pode ser melhor entendida não como fenômeno de elementos antagônicos, mas como uma tensão dentro de uma mesma supratradição original, cujo tensionamento bifurcou seus caminhos no século XVII. Por fim, sugerir uma reflexão diante tanto da incongruência – ignorância, amnésia ou mesmo menosprezo – da parte de presbiterianos para com sua própria tradição orante e litúrgica quanto diante do fenômeno relativamente recente da conversão para tradições como a Romana ou a Ortodoxa Oriental
2. DOS PRIMÓRDIOS À REFORMA
Na tradição da qual nós presbiterianos descendemos, as doutrinas da reforma não foram apresentadas a pagãos cujos ouvidos escutaram o evangelho pela primeira vez, mas a um corpo cristão pré-existente: o cristianismo britânico, o qual, por sua antiguidade, tinha já um caráter bastante próprio. Esse ethos do cristianismo britânico – céltico, anglo-saxão e normando – foi costumeiramente um de independência. Por exemplo, não foi até meados do século VII d.C. que foi trazido à atenção dos escoceses que eles celebravam a páscoa no tempo errado, ou melhor dizendo, “que os escoceses guardavam o Domingo de Páscoa de modo contrariamente ao costume da igreja universal”, ou seja, ao diferentemente do modo da Sé Romana (BEDA, 1910, III.XXV). Um sínodo foi convocado no ano de 664 d.C., o Sínodo de Whitby, para que os escoceses se adequassem à datação e modo romano da observância pascal, mas a observância a seu próprio modo persistiria conforme vinham fazendo desde sua conversão, há alguns séculos, por mais 50 anos (BEDA, 1910, III.IV).
A imposição romana na questão pascal mediante a hierarquia da igreja pode ter sido sobre o cristianismo escocês em particular, mas a imposição sobre a questão cúltica foi sobre o cristianismo britânico em geral. A fé cristã teria chegado às Ilhas Britânicas a partir da Gália, atual França, por volta do ano 200 d.C. Ora, tendo os próprios gauleses recebido o evangelho do oriente, o cristianismo britânico não podia ser romano, o que gerou um caráter tão distinto de ser igreja que causou não pouca consternação a Agostinho da Cantuária (séc. VI.), enviado de Roma para evangelizar os habitantes da Grã-Bretanha (DRURY, 1901, pp. 4-5). Assim, não somente a celebração pascal romana foi imposta ao cristianismo britânico, mas também, com o tempo, ritos ordinários romanos. Estes, no entanto, com menos sucesso do que a imposição pascal, pois embora os livros com ritos de caráter galicano – utilizados por Columba (séc. VI) e Edano (séc. VII) – tenham sido gradativamente substituídos pelo uso romano, eles jamais foram extintos. Tanto que Osmundo, bispo normando que acompanhou Guilherme, o Conquistador (c. 1028 – 1087), em sua conquista da Inglaterra, durante o séc. XI, deixa como legado o chamado “Rito de Sarum”, que é bem distinto do rito romano, não obstante semelhanças, e que foi o rito de uso inglês até a Reforma Anglicana (DRURY, 1901, pp. 6-7), durante o arcebispado de Tomás Cranmer (1489 – 1556), que cobriu o período de Henrique VIII, que foi quem rompeu com Roma, de Eduardo VI, de inclinação protestante, e de Maria I, sob cujo reinado o arcebispo foi sentenciado à morte na fogueira.
Foi esse Tomás Cranmer que iniciou um trabalho de introdução gradual do vernáculo nas missas, uma nítida influência da Reforma, para que o ato de culto fosse popularizado, ou seja, para que o povo pudesse participar e assentir conscientemente ao ato de adoração (DRURY, 1901, p. 34). Em 1543, a leitura após o Te Deum e o Magnificat passa a ser feita em inglês, não em latim. Em 1544, surge a primeira litania em inglês para o culto público. Em 1547, as leituras indicadas no lecionário para a epístola e o evangelho passam a ser lidas em inglês. Em 1548, o cálice passa a ser servido ao povo, o que já era uma demanda audaz da Reforma, pois, embora As Intitutas, de Calvino, ainda estivessem em sua terceira edição [2] e a edição definitiva não saísse por mais uma década, a condenação ao “roubo de metade da Ceia da maior parte do povo de Deus” já estava presente, defendida e difundida (CALVINO, 1536, p. 113). Em 1549, é concluído o primeiro Livro de Oração Comum, que reuniu aspectos herdados do cristianismo céltico, anglo-saxônico, normando e romano às demandas da Reforma.
Quase 1000 anos antes, Agostinho da Cantuária escrevera ao Papa Gregório, o que o enviara às Ilhas Britânicas, sobre o modo de proceder, pois os costumes não eram os mesmos observados em Roma. A resposta obtida foi:
Você sabe, meu irmão, o costume da Igreja Romana, na qual você foi criado. Mas me agradaria que, caso encontre qualquer coisa que possa ser mais aceitável ao Todo-Poderoso Deus, seja na Igreja Romana, na Galicana ou em qualquer outra, você, optasse cuidadosamente por ela, laboriosamente ensinando à igreja dos ingleses, que ainda é nova na fé, o que quer que se possa unir das várias igrejas. Pois as coisas não devem ser amadas por causa dos lugares [de origem], mas os lugares por causa das coisas boas. Escolha, portanto, de cada igreja as coisas que são piedosas, religiosas e retas, e, quando estiveram reunidas em um único corpo, que as mentes dos ingleses se acostumem a ele. (BEDA, 1910, I.XXVII, tradução e grifo nossos).
É com uma boa dose de ironia histórica, portanto, que se observa que coube a Tomás Cranmer, influenciado pela Reforma, não a Agostinho da Cantuária, influenciado por sua criação romana, cumprir o sábio conselho de um papa.
3. DA REFORMA À ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER
Não obstante os méritos de Cranmer e a edição do LOC de 1549, ainda havia o que reformar, apesar de Martin Bucer (1491 – 1551) relatar em carta de abril de 1549 que, na Inglaterra, “a causa da religião, no que diz respeito ao estabelecimento de doutrinas e definição de ritos” estava “bem próxima do que desejávamos” (ROBINSON, 1847, p. 535). Bucer é relevante para a história devido à sua influência sobre o próprio Cranmer, com quem ele se correspondia há quase 15 anos (ROBINSON, 1847, pp. 520-533) assim como sobre a academia inglesa em geral desde que virara professor de teologia em Cambridge, após ser exilado para a Inglaterra, em 1549, cargo que ocuparia até sua morte (DRURY, 1901, p. 27). Além disso, ele possuía experiência no assunto, uma vez que fora ele que, juntamente com Melanchton, em 1547, sob comissionamento do Hermann von Wied, Arcebispo de Colônia, compilara material para a liturgia alemã, da qual Cranmer tão livremente se valeu (DRURY, 1901, p. 25-26).
Esse otimismo não durou muito tempo. Cerca de um ano depois, no domingo de Pentecoste de 1550, Bucer escreveu uma carta tão negativa a Calvino sobre a situação da causa de Cristo no reino da Inglaterra que ele pede que ninguém mais a leia, exceto Farel e Viret (ROBINSON, 1847, pp. 548). O mal estado da formação pastoral, a corrupção da nobreza e dos bispos era tanta que pouco podia “ser efetuado pela restauração do reino de Cristo por meras ordenanças [políticas] e remoção de instrumentos de superstição” (ROBINSON, 1847, pp. 546). Esse estado de espírito não impediu que Bucer atendesse ao pedido de seu bispo diocesano, Tomás Goodrich, Bispo de Ely, para que escrevesse suas considerações sobre o LOC de Cranmer. Assim, em em 5 de janeiro de 1551, Bucer entregou suas considerações por escrito a Goodrich. No mês seguinte, ele veio a falecer (JAMMERTHAL, 2013, pp. 28-29).
Bucer não foi a única voz a ajudar a moldar a segunda edição do LOC, que viria em 1552, mas sua influência tampouco pode ser exagerada, uma vez que, das suas 60 críticas, menos da metade foram acatadas (DELLAR, 1992, p. 352). Mas foi graças às suas críticas que, quando da segunda edição do LOC, em 1552, foram revisados o rito do batismo (eliminação do crisma, unção com óleo e bênção da água), o rito da comunhão (eliminação do sinal da cruz sobre o pão e o vinho), a oração pela igreja (eliminação da petição pelos mortos) e a oração de oblação (eliminação da referência ao ministério dos anjos). Ou seja, embora não possamos exagerar a influência de Bucer no LOC de 1552, ele foi, sim, instrumental para empurrá-lo em uma direção decididamente reformada (DELLAR, 1992, p. 352-353).
Os dois primeiros LOCs contaram com um ambiente político favorável aos reformistas, pois reinava na Inglaterra o rei Eduardo VI (1537 – 1553). No entanto, após uma morte prematura por causa de uma doença desconhecida tão terrível que o teria feito estar contente de morrer (SKIDMORE, 2007, p. 254), sua meia-irmã, Maria Tudor, a que ganhou de seus oponentes protestantes o epíteto de “Maria Sanguinária”, ascendeu ao trono. Durante seu reinado, ela buscou reverter os avanços reformistas anteriores, chegando a restaurar os antigos livros litúrgicos em latim e organizar celebrações do retorno da Inglaterra à obediência papal (DUFFY, 2010, pp. 4-5). mas sua morte em 1558 e consequente retorno de uma protestante ao trono – Elizabeth I, sua irmã – impediu sua contrarreforma.
A rainha Elizabeth I (1533 – 1603) conseguiu pacificar as facções religiosas o suficiente para que, em 1559, o parlamento passasse o Ato de Uniformidade, onde não apenas o LOC seria restaurado, mas especificamente o LOC de 1552, que, como já visto, era decididamente mais protestante, com algumas leves mudanças, sendo as mais relevantes uma combinação da linguagem eucarística para deixá-la a mais ampla possível e a eliminação de uma litania contra o papa (DRURY, 1901, pp. 80-81). Não obstante a amplitude adotada por Elizabeth I, o foco em uniformidade de culto e o desenvolvimento, em 1571, dos XXXIX Artigos de Religião em sua forma como são até hoje conhecidos geraram dissensão. Foi nesse período que tomaram vida tanto o movimento não-conformista quanto o que Drury chama de “cisma italiano”: o (res)surgimento da Igreja de Roma na Inglaterra (1901, p. 84).
Elizabeth I morre sem ter gerado filhos, portanto, Jaime VI da Escócia (I da Inglaterra; 1567 – 1625), seu parente mais próximo, assume o trono inglês em 1603. Tão logo coroado, puritanos ingleses fizeram uma petição para discutir alterações no LOC. Seis meses depois, em 1604, episcopais, puritanos e o rei, ele próprio erudito em assuntos teológicos, reuniram-se em conferência no palácio da Corte de Hampton. Também dessa vez o LOC de 1552 permaneceu inalterado. Algumas perguntas foram acrescidas ao catecismo e algumas orações sofreram pequenas reformulações, mas a mudança relevante foi a de tornar irregular o batismo por leigos. Note-se: o batismo continuava válido, mas se tornara irregular. Isso foi uma vitória para não-conformistas em geral, que faziam questão de distanciar um pouco a relação entre batismo e salvação, e para puritanos de tradição pedobatista, em particular, pois gostavam da ideia de parteiras poderem batizar bebês em caso de emergência (DRURY, 1901, pp. 84-89). O grande resultado desse encontro do qual podem se orgulhar tanto puritanos quanto episcopais foi a formação da comissão que, em 1611, conclui a tradução da Bíblia em sua Versão Autorizada, a Versão do Rei Jaime (King James Version).
Carlos I sucedeu seu pai, Jaime, em 1625. A ênfase religiosa em uniformidade de culto somada a ânimos políticos aflorados gerou a Guerra dos Três Reinos (1638 – 1653), Escócia, Inglaterra e Irlanda, sobre os quais Carlos I reinava. Em 1643, o parlamento inglês convidou delegados escoceses para a Assembleia de Westminster, a fim de que tratassem de disciplina e liturgia e produzissem um diretório de culto. Os autores desse diretório não se viam como inovadores, mas como continuadores da reforma litúrgica iniciada por Cranmer um século antes, combinando ordem, liberdade de consciência e fidelidade escriturística (BREWARD, 2013, pp. 11;16). O Diretório de Culto ficou pronto em 1644, sendo o primeiro de vários documentos da Assembleia de Westminster a ser concluído, dentre eles, outro diretório, o Diretório de Culto Familiar, aprovado em 1647 (TOKASHIKI, 2020, p. 13).
Tamanha ênfase na exposição da palavra de Deus, seja do púlpito da igreja, seja da mesa de jantar, não passou despercebida mesmo ao partido contrário. Mesmo séculos depois, um famoso bispo anglicano reproduziu ipsis literis toda a seção do DCW sobre pregação da palavra em seu opúsculo de conselhos a jovens pastores (MOULE, 1902, pp. 288-296).
4. DO ATO DE UNIFORMIDADE (1662) À IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL
Embora os documentos resultantes da Assembleia de Westminster tenham sido produzidos para valerem para a Igreja da Inglaterra, os desenvolvimentos desse período conturbado (e.g., foram decapitados nesse período tanto o rei Carlos I como o arcebispo Laud) resultaram na restauração da monarquia e no Ato de Uniformidade (1662), que trouxe o LOC de volta.
O novo rei, Carlos II (1630- 1685), convocou a Conferência da Savoia (1661), onde doutores presbiterianos e bispos anglicanos tentaram chegar a um meio termo. Contudo, ao serem demandados o que consideravam pecaminoso em si no LOC, os presbiterianos argumentaram que, embora certos atos do LOC em si não fossem pecaminosos, o fato de eles obrigarem a consciência de ministros e do povo era algo inerentemente pecaminoso. Isso selou o fracasso de uma conferência que já não vinha fazendo progresso. Os presbiterianos se retiraram, um comitê de bispos foi convocado e é por isso que o LOC de 1662 resultou em algo decididamente episcopal (DRURY, 1901, pp. 99-105).
Alguns aspectos novos da vida britânica foram incorporados ao LOC de 1662, como o rito para batismo de adultos, uma vez que havia já muitos novos convertidos indígenas nas colônias americanas (DRURY, 1901, p. 116) e a oração por aqueles que estavam embarcados a serviço da marinha real, algo, aliás, que constava na seção “oração após o sermão” do DCW. No mais, o relevante para nós é que a Versão Autorizada virou a tradução oficial do LOC – exceto para o saltério (PROCTER; FRERE, 1910, p. 187) [3] – algumas cerimônias foram alongadas e o rito cerimonial voltou a falar sobre presença corpórea de Cristo na eucaristia, algo que provavelmente não seria aceito caso a comissão contasse com doutores presbiterianos (DRURY, 1901, pp. 114-115).
Essa 5ª edição do LOC marca o último ponto de contato dos dois lados que tensionavam internamente a mesma supratradição do cristianismo das Ilhas Britânicas. À época da Revolução Gloriosa (1688), sugeriu-se revisar o LOC de 1662 na tentativa de reconciliar puritanos com a Igreja da Inglaterra, mas sem sucesso (BRITANNICA, 2005). Houve uma revisão do LOC no século XX, mas não é relevante para nosso tema.
Já o DCW, por não ser um livro de oração, mas um manual de instruções gerais que objetiva conciliar ordem com liberdade de consciência (BREWARD, 2013, p. 10), não passou por revisões. No entanto, a sua tradição, a presbiteriana, refinou muito dos seus conceitos de culto.
Quando foi organizada a Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América, em 1789, após consolidação da independência dos EUA, a denominação adotou como documentos confessionais alguns daqueles produzidos pela Assembleia de Westminster 140 anos antes, mas com já alterações para a realidade americana (LONGFIELD, 2013, pp. 48-49). Quando o Sínodo do Brasil, filho do presbiterianismo americano, foi organizado, nós já recebemos apenas a Confissão e os catecismos com as alterações de 1789 (governo civil) e de 1887 (casamento). Não recebemos o Diretório de Culto de Westminster (TOKASHIKI, 2020, p. 14; SÍMBOLOS DE FÉ, 2005, pp. 9-14), mas o diretório em voga nas igrejas norte-americanas, uma do qual ainda em 1924 constava no “Livro de Ordem das Egrejas Presbyterianas do Brasil” (LIVRO DE ORDEM, 1924, pp. 101-129).
Isso não significa que os presbiterianos deixaram de se importar com o culto, mas que, pela própria ênfase em liberdade de consciência e sua tradição genebrina, continuassem a produzir manuais de culto, não livros de oração, à semelhança de Knox, que produzira um Book of Common Order em 1556, durante seu período em Genebra, e que chegou à Escócia, eventualmente, à semelhança dos teólogos de Westminster, que produziram o Diretório de Culto de Westminster, e à semelhança de nossa “mãe”, o presbiterianismo norte-americano, que produziu diretórios de culto no século XIX, dentre os quais se destaca o Diretório de 1894, da Igreja do Sul, que veio alguns anos após a revisão confessional de 1887, o qual buscava uma restauração da liturgia tradicional em que coexistissem reforma e catolicidade (BOOK OF COMMON WORSHIP, 1993, pp. 2-3).
A incipiente Igreja Presbiteriana do Brasil também esteve envolvida nessa busca por ordem e liberdade, reforma e catolicidade. Ou melhor, um de seus quadros esteve envolvido: o Rev. Modesto Perestrello Barros de Carvalhosa (1846 – 1917). Ele esteve atento ao reflorescimento do culto na Europa e nos EUA. “Sua preocupação era que a sua própria igreja, a Igreja Presbiteriana do Brasil, participasse da redescoberta de suas raízes reformadas não somente na doutrina, mas no culto’ (HAHN, 1989, p. 197). Ele sabia dos perigos do culto raso. Por isso, escreveu um Manual do Culto, que se destinava ao uso por pregadores leigos.
É interessante que nosso Manual do Culto apresente a superação presbiteriana de algumas situações sensíveis da época da Assembleia de Westminster. Por exemplo, embora o DCW não aprove ritos funerários, o Manual do Culto tem não apenas uma, mas duas formas para funerais: uma para adultos e outra para crianças (MANUAL DO CULTO, 1999, pp. 54-66). Nos anos 70 do século XX, o Manual do Culto foi reformulado no “Manual Litúrgico”, onde alguns arcaísmos foram substituídos por termos correntes, a ordem dos capítulos foi reestruturada e outras formas foram acrescentadas, como as de posse de ministro, bodas de ouro e bodas de prata (MANUAL LITÚRGICO, 2005, pp. 85-90;151-164).
São esses os manuais empregados pela Igreja Presbiteriana do Brasil até o dia de hoje. Assim, é na contínua busca pela pureza da expressão cúltica, do diálogo corporativo entre Deus e seu povo, que está o fio que, via Reforma do séc. XVI, liga o presbiterianismo brasileiro do séc. XXI ao cristianismo britânico antigo, o qual, por sua vez, liga-o ao cristianismo primitivo.
5. CONCLUSÃO
Como herdeira da reforma calvinista, a tradição presbiteriana é inerentemente litúrgica. Como filha da supratradição do cristianismo das Ilhas Britânicas, seu espírito é inerentemente antigo, apesar de existir como tal há aproximadamente quatro séculos, pois se pode argumentar que ela está presente no seio do cristianismo primitivo do mesmo modo como Levi estava em Abraão (BÍBLIA, 1993, p. 1220 [Hb 7: 9,10]).
É importante notar o registro que faz o teólogo de Princeton, Charles Washington Baird, de uma carta de Calvino endereçada ao Protetor Somerset, regente da Inglaterra em 1547 e 1549, durante o reinado de Eduardo VI, favorável aos reformistas, na qual o grande reformador escreve o seguinte sobre oração:
Eu altamente aprovo que haja uma forma estabelecida [de oração] da qual os ministros não possam variar. Primeiro, para que haja algum auxílio aos simples e pouco instruídos. Segundo, para que a harmonia e consentimento entre as igrejas seja aparente. Por último, para que se previna contra a frivolidade caprichosa e a leviandade de inovações afetadas. Para esse fim, já mostrei que um catecismo seria muito útil. (BAIRD, 1855, p. 22, tradução nossa)
Naturalmente, o contexto histórico e a situação eram o da redação do primeiro LOC, lançado em 1549, onde certas discussões, como questões de consciência e separação entre igreja e estado não haviam avançado, muito menos haviam chegado aos paradigmas que temos hoje. No entanto, a verve central de evitar a banalização da adoração e inovação cúltica se manteve ao longo da história até hoje, conforme testemunham os aqui expostos esforços de composição do Livro de Oração Comum, do Diretório de Culto de Westminster e da produção e discussão litúrgicas no presbiterianismo brasileiro.
É surpreendente, portanto, que um dos motivos alegados por egressos da fé evangélica convertidos a Roma ou ao Oriente seja a “falta de raízes históricas” e de “continuidade com a igreja neotestamentária” (McGRATH, 2007, p. 412). A migração religiosa habitual é a do fluxo contrário. Não é habitual ver um ex-pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil e alumnus de seu seminário histórico, o Seminário Presbiteriano do Sul, fazendo profissão pública de fé diante de um arcebispo, durante uma missa, numa catedral, testemunhando que fizera parte, durante 20 anos (sendo 10 como pastor), de uma igreja séria, porém “cismática” e sem comunhão com “a Igreja que Jesus fundou”, que é o único local onde se encontra “o Jesus eucarístico” (ACI DIGITAL, 2021).
Embora seja tentador alegar surpresa diante do fato de que reformados sedentos por mais profundidade tenham expandido seus horizontes e agora podem ser encontrados entre os Ortodoxos Orientais e os Católicos Romanos (HART, 2000), isso não seria correto. A verdadeira surpresa reside no fato de que a vida orante e a riqueza litúrgica da tradição reformada, em geral, e da presbiteriana, em particular, as quais encontram sua razão de ser justamente no ato do culto, tenham sido tão ocultadas a essas pessoas – inclusive, aparentemente, a pastores! – que a elas não restou alternativa senão buscar fora de casa a paz para essas inquietações.
Novamente, é tentador alegar surpresa, mas a ressaca para essa onda está visível há, pelo menos, quase 90 anos, quando Erasmo Braga, ministro presbiteriano e educador de renome nacional, assim manifestou sua preocupação sobre a situação nacional:
As igrejas nacionais despenderam muita de sua energia na autopropagação. Elas cresceram aos custos da profundidade de sua vida espiritual. […] Existem sinais de descontentamento com o tipo predominante de culto público e intelectualismo raso no púlpito. Um desejo está sendo manifesto para o enriquecimento espiritual da adoração. A vida de oração é, em geral, pobre, se julgada pelo tipo de oração oferecida nas reuniões públicas. (BRAGA, 1932, pp. 131-132, tradução nossa) [4]
Dado o esforço histórico tanto do cristianismo das Ilhas Britânicas, com seus elementos célticos, anglo-saxões e normandos, quanto da reforma calvinista, de cuja síntese vem a tradição presbiteriana, seria extravagante pensar que os ministros reformados deveriam se preparar previamente tanto para as orações que serão feitas durante o culto público quanto para o sermão que será pregado? Há modelos (e até mesmo prescrições) do LOC, do DCW e dos manuais de culto das denominações nacionais que podem ajudar.
Se os símbolos de fé do presbiterianismo ensinam que a oração é tão meio exterior e ordinário de graça quanto a palavra e o sacramentos, “os quais todos se tornam eficazes aos eleitos para a salvação” (SÍMBOLOS DE FÉ, 2005, p. 252 – Breve Catecismo n. 88), ou seja, se ela tem tanto valor quanto a palavra pregada e os sacramentos para comunicar as bênçãos da redenção, seria extravagante pensar que os ministros reformados deveriam se familiarizar de tal modo com os livros de oração e manuais de culto que a estrutura de sua oração fosse moldada por essas obras de incontáveis gerações de seus antecessores?
Se a tradição presbiteriana é inerentemente histórica e litúrgica, e se se tem observado o estranho fenômeno de aderentes seus terem começado a atravessar o Tibre e o Bósforo, há de se refletir se não urge reconectar-se com as raízes que um dia a fizeram florescer. O Livro e o Diretório ainda falam.
6. BIBLIOGRAFIA
BAIRD, C.W. Eutaxia, or The Presbyterian Liturgies: Historical Sketches. Nova Iorque: M. W. Dodd Publisher, 1855. Disponível em: https://archive.org/details/eutaxiaorpresbyt00bair/. Acesso em 10 jul. 2021.
BEDA. The Ecclesiastical History of the English Nation, trad. L.C. Jane’s 1903 Temple Classics translation), intro. Vida D. Scudder. Londres: J.M. Dent; Nova Iorque: E.P. Dutton, 1910 (orig. c. 731). Disponível em: https://sourcebooks.fordham.edu/basis/bede-book1.asp. Acesso em 21 abr 2021.
BÍBLIA Sagrada, 2ª ed. revista e atualizada no Brasil. trad. João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
BRAGA, Erasmo. The Republic of Brazil: A Survey of the Religious Situation. Nova Iorque: World Dominion Press, 1932.
BREWARD, Ian. Introdução. In: Diretório de Culto de Westminster. Recife: Os Puritanos, 2013. p. 9-17
BRITANNICA. Book of Common Prayer. In: Encyclopedia Britannica, 2005. Disponível em: <h https://www.britannica.com/topic/Book-of-Common-Prayer>. Acesso em 26 abr. 2021.
BOOK OF COMMON WORSHIP. Louisville: Westminster John Knox Press, 1993.
CALVINO, João. Obras de João Calvino – VOL 1. [recurso eletrônico]. Recife: Editora CLIRE – Centro de Literatura Reformada, 2018; ePUB.
______. Institutes of the Christian Religion: 1536 Edition. Grand Rapids: Eerdmans, 1995.
CARTA LITÚRGICA, Secretaria Executiva do Supremo Concílio, Relatório da Comissão Especial sobre Liturgia, 2010.
DELLAR, Howard. The Influence of Martin Bucer on the English Reformation. The Churchman. Watford, v. 106, n. 4, p. 351 – 356, winter/1992. Disponível em: https://biblicalstudies.org.uk/pdf/churchman/106-04_351.pdf. Acesso em 25 abr. 21.
DRURY, Thomas Worthley. How We Got Our Prayerbook. Londres: J. Nisbet, 1901.
DUFFY, Eamon. Fires of Faith: Catholic England under Mary Tudor. New Haven: Yale University Press, 2010.
EX-PASTOR QUE SE CONVERTEU AO CATOLICISMO: É ONDE ENCONTRO O JESUS EUCARÍSTICO. ACI Digital, Lima, 29 mar. 21. Disponível em https://www.acidigital.com/noticias/ex-pastor-que-se-converteu-ao-catolicismo-e-onde-encontro-jesus-eucaristico-72656. Acesso em 22 abr. 2021.
FRAME, John. Machen’s Warrior Children. In: CHUNG, Sung Wook (ed). Alister E. McGrath and Evangelical Theology. Grande Rapids: Baker, 2003. p. 131-151.
HAHN, Carl Joseph. História do culto protestante no Brasil. São Paulo: ASTE, 1989.
HART, Darryl G. Rediscovering Mother Kirk: Is Hihg-Church Presbyterianism na Oxymoron? Touchstone: A Journal of Mere Christianit. Chicago, v. 13, n. 10, dez/2000. Original disponível em https://www.touchstonemag.com/archives/article.php?id=13-10-020-f. Acesso em 17 abr. 21. Disponível em tradução minha em:
JAMMERTHAL, Tobias. Martin Bucer in Dialogue with the English Reformation: from Moderate to Moderated. 2013. Dissertação (Mestrado em Teologia e Religião)–Universidade de Durham, Durham, 2013.
KAISER JR, Walter; SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica: Como ouvir a palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época. 3ª Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
LIVRO DE ORDEM DAS EGREJAS PRESBYTERIANAS DO BRASIL. São Paulo: Irmãos Ferraz, 1924.
LONGFIELD, Bradley J. Presbyterians and American Culture: a History. Louisville, Kentucky: Westminster Johh Knox Press, 2013.
MANUAL DO CULTO. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
McGRATH, Alister. Christianity’s Dangerous Idea: The Prostestant Revolution – A History from the Sixteenth Century to the Twenty-First Century. São Francisco, CA: HarperOne, 2007.
SÍMBOLOS DE FÉ: contendo a Confissão de Fé, Catecismo Maior e Breve / Assembleia de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2005.
MANUAL LITÚRGICO DA IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. 3ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2005 (orig. 1972).
MANUAL DO CULTO DA IGREJA PRESBITERIANA INDEPENDENTE DO BRASIL. 2ª ed rev. e ampl. São Paulo: Pendão Real, 2011.
MOULE, Handley. To My Younger Brethren: Chapters on Pastoral Life and Work. 4ª Ed. Londres: Hodder and Stoughton, 1902
PROCTER, Francis; FRERE, Walter Howard. A New History of the Book of Common Prayer: With a Rationale of Its Offices. Londres: Macmillan and Co., Limited, 1910.
RIBEIRO, Boanerges. Igreja Evangélica e República Brasileira (1889-1930). São Paulo: O Semeador, 1991.
SMITH, Harold. The Prayer Book and the Directory. The Churchman. Watford, v. 41, n. 1, p. 29 – 36, jan/1927. Disponível em: https://biblicalstudies.org.uk/pdf/churchman/041-01_029.pdf. Acesso em 25 abr. 21
SKIDMORE, Chris. Edward VI: The Lost King of England, Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2007.
TOKASHIKI, Ewerton. Diretório de Culto Familiar: Segundo a Assembleia de Westminster. São Paulo: Editora Dordt, 2020.
NOTAS
[1] Atualmente cursando o Bacharel em Teologia no Seminário Presbiteriano do Sul, da Igreja Presbiteriana do Brasil, é candidato ao sagrado ministério do Presbitério Unido (São Paulo, SP). Em vida pregressa, profissional de finanças corporativas de 2011 a 2021, com experiência heterogênea (de grupos globais e empresa própria), MBA pela FGV IDE (2015-17) e bacharel em Administração de Empresas pela FGV-EAESP (2008-12).
[2] As cinco edições latinas d’As Institutas: 1536 (seis capítulos), 1539 (23 capítulos), 1543 (27 capítulos), 1550 (mudanças editoriais menores), 1559 (edição final com 80 capítulos).
[3] Por decisões dos bispos, o saltério permanece com a versão da Bíblia de Coverdale (1535), feita por Myles Coverdale (1488 – 1569), reformista inglês consagrado ao episcopado por Tomás Cranmer em 1551
[4] Obra inédita de Erasmo Braga escrita em 1932, meses antes de sua morte, em inglês e tendo como público-alvo as agências de missões do mundo protestante anglófono. Ela está no planejamento de lançamentos da Editora Monergismo, em tradução minha, ainda neste ano de 2022.