Da Educação do Futuro Orador
por Quintiliano
São a paixão e a fantasia que nos deixam eloquentes
Marco Fábio Quintiliano
1. Na maior parte das crianças não falta inteligência, e sim a aplicação.
Ao nascer um filho, o pai nele concentra todas as esperanças, visto que, desde o início, procura esmerar-se. Isto, porque é falsa a queixa de que são poucos os que podem aprender o que se lhes ensina e, se a maior parte, por sua pobreza de espírito, perde tempo e trabalho, é óbvio que, em outros, encontraremos facilidade de educação e apreensão, de memória, como que ambas as coisas são naturais, no ser humano.
Assim como a natureza criou as aves para voar, os cavalos para as corridas, as feras para serem bravias, também deu ao homem a faculdade da inteligência, razão por que consideramos celestial a origem da alma.
O nascimento de pessoas rudes, incapazes de aprender é tão contra a natureza, é frequente quanto o nascerem corpos disformes. Eis a prova: nas crianças, surgem esperanças de tanto futuro as quais, se desaparecem com a idade, é evidente que lhes faltou assistência e não entendimento. Aceita a ideia de que um seja mais inteligente de que o outro, isto será apenas para usar a expressão “mais ou menos”, mas não se encontrará nenhuma criança da qual não se consiga algo, à força de estudo. O pai que se detenha, que reflita sobre essa asserção, desde o início, usará o maior cuidado para aproveitar as esperanças daquele que está preparando a oratória.

2. Das amas, pais, preceptores e companheiros das crianças.
Antes de tudo, não deve ser eivada de erros a conversação dos preceptores, os quais Crisipo desejava que fossem sábios, se possível; se não, fossem escolhidos entre os melhores. Indubitavelmente, deve se cuidar que as amas tenham bons costumes e que saibam falar bem, porquanto são elas as primeiras pessoas que as crianças ouvem e cujas palavras se esforçarão em reproduzir, por imitação. Mesmo porque, é natural, conservamos o que aprendemos na primeira fase de nossa vida, como as vasilhas novas o aroma do primeiro licor que contiveram; da mesma maneira porque não se pode destruir a primitiva cor dos tecidos. E, quanto mais profundas forem esses maus hábitos, tanto mais fortemente se nos imprimirão. O bom, com facilidade, se transforma em vício; mas o vício… quando o mudarás em virtude? Não se deve, pois, habituar as crianças a uma linguagem que, mais tarde, precisarão desprender.
Se a alguém parece que peço muito, lembre-se que formar um orador é árdua empresa e, quando nada se omita para esse empreendimento, é muito mais e mais difícil o que fica por fazer. Isso acontece porque é indispensável um estudo ininterrupto com mestres, os melhores e de muito conhecimento. E, se alguém se recusar a ensinar, da melhor maneira, é porque o defeito está no homem e não no talento.
Mas, se não for exequível conseguir preceptores e companheiros, como desejo, ao menos haja um professor assíduo que tenha boa dicção e saiba corrigir, imediatamente, aqueles que, em presença do discípulo, cometem erros de pronúncia, não permitindo que se formem vícios de linguagem; tudo isso de modo que se chegue a entender que o meu primeiro conselho é o acertado e que, o que disse acima, é um remédio.
3. Deve-se começar o estudo pela língua grega.
A minha indicação é que a criança comece pela língua grega, pois a latina, sendo mais usada, já a aprendemos mesmo que não desejemos e, também, deve ser instruída a criança, primeiramente, nas letras e ciências gregas por causa da origem do nosso idioma. Mas não há premência em que isso se proceda tão escrupulosamente, que se fale e aprenda por muito tempo somente a língua grega, como alguns fazem, pois disso emanam muitos defeitos — não só na pronúncia diferente, como na linguagem — os quais arraigando-se, pelo longo tirocínio com a língua grega, acabam, também, por tornar o modo de falar estranho dos demais. E assim, ao estudo da língua grega, deve seguir-se o da latina, a fim de aprendê-las quase ao mesmo tempo. Sucederá, pois, que, dando-se ao aprendizado de ambas o mesmo cuidado, uma não prejudicará à outra.
4. As crianças têm capacidade de receber instrução antes dos setes anos… Não deve ser, porém, muito antecipada.
Pensavam alguns que as crianças com menos de sete anos não deviam aprender a ler, por não ser uma idade capaz de instrução nem de aptidão para o trabalho, parecer seguido por Hesíodo, segundo dizem muitos anteriores ao gramático Aristófanes.
Não pensem que ignoro o que seja cada idade e julgue que se deva oprimir, exigindo um trabalho formal nos primeiros anos. Devemos, sim, ter muito cuidado para que a criança não aborreça o estudo, pelo qual ainda não pode ter inclinação, a ponto de, depois, virar nele aversão. Tudo deve ser processado como se fosse um jogo: a criança é solicitada, é elogiada e, muitas vezes, alegramo-nos o pouco que sabe.
Com a promessa de formardes um orador, ensinastes coisas sem importância, dirão alguns; mas deveis saber que, também as letras têm infância e que, assim como a formação dos organismos, para serem robustos, começa no berço, assim aquele que há de ser um orador eloquente, faz, a seu tempo, suas manhas, balbuciou as palavras e traçou garatujas ao aprender a escrever.
5. Do ler e escrever.
A mim, pelo menos, não me agrada o que vejo muitos praticarem; ensinar o nome e a ordem das letras antes de ensinar-lhes a configuração. Isto dificulta o conhecimento delas, visto que seguindo-se o som de cada uma, não será dada a devida atenção à sua forma. Esta é a razão pela qual os mestres, quando pensavam havê-las fixado na memória dos alunos, seguindo a ordem alfabética, voltavam atrás, ordenando-as de outra maneira e dando-lhes a conhecer as letras por sua forma e não pela ordem natural. Daí ser-lhes ensinado a imagem e o nome das letras como conhecem as pessoas. Mas, o que prejudica o conhecimento das letras, sabe-se, não prejudicará o das sílabas.
Para estimular a criança a aprender, aprovo o método de formar jogos com as letras em marfim, madeira, papel lixa, ou também algum outro meio de acordo com a idade e, com o qual, sintam prazer em manejar, olhar e chamar pelo nome. Quando começar a escrever, não será desinteressante gravar as letras em um quadro de madeira para que acompanhe, com o lápis, os contornos, nos rabiscos que faz. Assim não errará, como aconteceria se os moldes fossem em cera, nem se desviará da maneira por que foram escritas. De outro lado, exercitando continuamente e com rapidez, os traços fixos, firmará os dedos, não precisando colocar uma mão sobre a outra, como garantia.
Para as sílabas não é tão indispensável livro, pois devem ser todas aprendidas e não há tanta necessidade de estender o conhecimento das mais difíceis, como fazem comumente, para quando forem escritas, serem mais depressa percebidas. Além do que foi dito, não há muito que confiar no que as crianças aprendem, da primeira vez. Antes, será muito útil repetir e não apressá-las, para que leiam, de início, correntemente, e sim quando juntarem as letras sem embaraço, sem parar e nem pensar demais. Unindo, então, as sílabas abrangerão toda a palavra e, depois, começarão com elas, a formar frases. É incrível quanta inibição no ler ocasiona a pressa, nascendo, daí, o titubear, o deter-se e o repetir os vocábulos. E, se chegam a errar algo, quando se atrevem a fazer mais do que podem, desconfiam, então, do que sabem. Que leiam sem emendas e sem interrupção, porém, com pausa, até que com exercício cheguem a ler com correção a rapidez. Olhar para frente e ver a palavra que se segue (regras que todos os mestres são) não só é o que ensina o método com a prática, porque quando se olha o que se segue, pronuncia-se o primeiro e a atenção do indivíduo divide-se, aliás coisa mui difícil. Dessa forma, os olhos terão um trabalho e a voz, outro. Quando a criança começar a escrever, não lamentemos a preocupação que tivemos em evitar que perca tempo com vocábulos comuns e que ocorrem diariamente. Pode ir ainda aprendendo enquanto se ocupa de outra coisa, a interpretar palavras mais desconhecidas da língua, a que os gregos chamam de “glosas” e conseguir com esses primeiros elementos o que depois lhe há de tomas algum tempo. E, já que me detenho em minúcias, desejaria que os cartazes apresentados às crianças contenham sentenças úteis, bons conselhos, porque a sua recordação durará até a velhice. E, ao fixarem-se numa inteligência, ainda vazia de ideias, serão melhor aproveitadas para a formação de hábitos e atitudes. Podem também ser conhecidos, daquela forma, conceitos de homens ilustres, trechos escolhidos, principalmente de poetas, coisas que agradam muito, nessa fase. A memória é muito útil ao orador e ela se cultiva e se afirma com o exercício; e essa é a maneira mais sutil com que o mestre pode tirar proveito, numa idade em que as crianças ainda não podem inventar algo.
Não será inútil, para que consigam uma dicção clara e desembaraçada, fazê-las repetir palavras difíceis, pesquisadas com esse fim, e sentenças formadas de vocábulos ásperos e que se confundam entre si, (os gregos chamam-nos de “enredosos”) obrigando-as a pronunciá-los rapidamente. Parece futilidade, à primeira vista; mas, isto, omitido, encherá a pronúncia com vícios que, não corrigidos, nos primeiros anos, durarão eternamente.
Fonte: Institutio Oratoria, Quintiliano.