Pernambuco Protestante
por Henriqueta Braga
Depois do desembarque e da tomada de Olinda, diz Baers em sua narrativa, “fizemos uma oração de graças a Deus e entoamos-lhe um hino de louvor”. Isto foi realizado a bordo pelos que não haviam desembarcado, entre os quais se contava o capelão, que dirigiu o culto imediatamente após o hasteamento da bandeira holandesa nos fortes e no Convento dos Jesuítas, conforme previamente combinado.
Consumada a vitória, realizou-se a 10 de março (1630) um Culto em Ação de Graças na Casa da Câmara, improvisada em capela, em Olinda. Posteriormente à chegada dos Conselheiros Políticos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais, o mesmo pastor celebrou, a 14 de março, o primeiro Culto Solene, por ocasião da posse de suas respectivas comissões. Ao ensejo da Páscoa, e por ordem dos Conselheiro, foi aberta, ornada e preparada a principal igreja paroquial de Olinda (a Igreja do Salvador) [1] onde o referido Ministro do Evangelho pregou os sermões de circunstância.
Firmemente estabelecidos em Pernambuco, os holandeses fizeram vir da Holanda vários pastores da Igreja Reformada. Estes se reuniam em Recife, sede do Governo, em Assembleias Clássicas (de caráter administrativo) cujas Atas foram, no começo deste século e por gentileza da Igreja Provincial de Utrecht, traduzidas e divulgadas pelo Dr. Pedro Souto Maior, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [2]. Como sempre começassem as reuniões com exercícios religiosos, encontram-se nas Atas, por vezes, referências aos textos explicados nessas ocasiões — São João 3:16; II Tessal. 1:3; Hebreus 2:14 e outras — bem como, por elas, se pode verificar o elevado grau de interesse com que os pastores holandeses desempenhavam no Brasil as suas funções e, também, acompanhar as atividades dos seus auxiliares, os chamados exortadores ou consoladores de enfermos, embora estes não tivessem assento em tais Assembleias.
Segundo Wätjen [3], competia aos consoladores visitar diariamente os doentes para com eles ler a Bíblia e orar. Refere-se o mesmo autor ao fato de todos os domingos, no serviço divino das congregações protestantes, se fazerem preces pelos pobres, pelos doentes e pelos feridos, levantando-se, após o sermão, coletas destinadas ao Hospital, ao Recolhimento e, mais tarde, também ao Asilo de Mendicidade.
Adaptaram-se igrejas católicas ao culto evangélico, como por exemplo a do Corpo Santo, também denominada de São Frei Pedro Gonçalves, em Recife, à qual acrescentaram os holandeses uma torre e “um bom relógio”. Os seus sinos, antes amarrados a traves com pouca altura, motivo pelo qual não podiam ser ouvidos senão na imediata redondeza, foram suspensos na torre, passando a anunciar as horas “a todo o bairro do Recife”. No cemitério da Igreja do Corpo Santo, depois que esta passou ao Culto Reformado, “eram levadas a enterrar as principais figuras do tempo falecidas em Pernambuco”, entre as quais se contam Codde, Carpentier, Lichthardt e João Ernesto (irmão de Maurício de Nassau) , falecido em 1639. Essa igreja, a primeira erguida no território que hoje constitui o bairro do Recife, tivera origem na ermida levantada aproximadamente em 1548 pelos devotos de São Frei Pedro Gonçalves, também conhecido como São Telmo ou Corpo Santo, padroeiro dos pescadores e navegantes. Depois de servir ao culto evangélico durante o domínio holandês, voltou ao uso católico-romano em 1655 com preeminência de matriz até ser derrubada, em 1800, para construir-se, no mesmo lugar, outra maior e de bela fachada de cantaria de Lisboa que, por utilidade pública, foi desapropriada e demolida em junho de 1913. Situava-se mais ou menos entre a antiga casa Hermstoltz e o edifício triangular que a defronta. Nesse trecho, a Avenida Marquês de Olinda cobre parte da área que o templo ocupava.
Recife possuiu, além da Igreja Holandesa, a Inglesa e a Francesa, pastoreadas por ministros evangélicos. A Igreja Inglesa funcionava na igrejinha do Convento de São Francisco, para esse fim adaptada. Aí se realizavam serviços religiosos aos domingos pela manhã oficiados pelo ministro anglicano Rev. Samuel Batselaer. A Igreja Francesa teve um templo próprio construído, em 1642, com o auxílio de oito mil florins, metade doados pelo Conselho dos Dezenove e metade por Maurício de Nassau. “Era um belo edifício muito bem situado em Maurícia, exatamente ao lado do canal que desembocava defronte da Barreta, na atual Praça Dezessete” [4]. Aí pregavam os ministros franceses Soler e Gilberto de Vaux em ofícios religiosos realizados dominicalmente das nove às onze horas da manhã perante numerosa assistência, pois era bem grande a comunidade francesa em Pernambuco. Informa Gilberto Freyre [5] que a antiga Igreja dos Franceses é a atual Igreja do Espírito Santo, transformada em igreja católica romana ao tempo da Restauração. Foi reconstruída em 1689 pelos jesuítas.
Os pastores holandeses, se bem que se dedicassem primordialmente às suas ovelhas, não descuravam da catequese nem da obra educativa, fato ao qual aludem Pedro Marinus Netscher em Os holandeses no Brasil e Hermann Wätjen em O domínio colonial hollandez no Brasil. Este último menciona uma comunicação do Pastor David von Doorenslaer, encarregado do trabalho missionário no seio das tabas indígenas, dirigida ao Conselho Eclesiástico, na qual se lê que em todas “as aldeias visitadas os selvagens ouviam de boa vontade a prédica e, com os pastores, oravam e cantavam”. Criaram-se escolas para os silvícolas dirigidas por ministros evangélicos vindos da Holanda. Mandou-se imprimir na metrópole um catecismo nas três línguas: holandesa, portuguesa e tupi. O abalizado historiador Vicente Themudo Lessa, no capítulo dedicado ao “Culto Protestante”, em sua obra Maurício de Nassau, o brasileiro, cita a afirmativa de Pedro Moreau, inserta por Sebastião Galvão em Dicionário de Pernambuco, concernente a uma tradução das Santas Escrituras para a língua brasílica por um jovem ministro inglês que haviam mandado estudar na Universidade de Leyden e que, de regresso ao Brasil, se dedicara a esse mister. O trabalho catequético não se fez em vão. Vários índios converteram-se e tornaram-se fervorosos crentes reformados [6].

Em outubro de 1636, João Maurício, Conde de Nassau-Siegen, nomeado Governador, Capitão e Almirante-General das terras conquistadas e por conquistar pela Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, partiu para Pernambuco fazendo-se acompanhar do seu capelão, o piedoso e muito erudito Ministro do Evangelho Francisco Plante, e de várias outras personalidades de grande valor intelectual. Chegaram ao Recife a 23 de janeiro de 1637.
Durante os oito anos do seu governo no Nordeste brasileiro, Nassau estendeu os seus domínios ao Maranhão e a Sergipe. Enfrentou sérias lutas, mas, com a clarividência que lhe era peculiar, ainda assim, fez prosperar a colônia, levando-a a um surpreendente grau de desenvolvimento nas ciências e nas artes.
Entre as notáveis figuras que o acompanharam ao Novo Mundo, citam-se os cientistas Guilherme Piso e Jorge Marcgraf, o arquiteto Pedro Post e os pintores Alberto Eckhout, Zacarias Wagner e Francisco Post que, através de obras aqui produzidas e relativas ao país, foram dos primeiros a revelar à Europa o Brasil autêntico, rico em possibilidades e ensaiando os primeiros passos no caminho da civilização. Coube ao historiador Gaspar Barléu [7] narrar as atividades de Nassau no Nordeste; e o período holandês que lhe foi posterior encontrou fiel e valiosa descrição na obra de João Nieuhof [8] que, tendo vindo para o Brasil em 1640, em pleno período nassoviano, aqui permaneceu até 1649.
O Palácio de Friburgo, que Nassau construiu para sua residência particular, ficava na Ilha de Antônio Vaz (atual bairro de Santo Antônio), fronteira ao Recife, ao qual ficou ligada por duas pontes por sua ordem construídas. Na mesma Ilha também fez levantar um Observatório Astronômico, o Palácio da Boa-Vista, outros monumentos e a Cidade Maurícia. O Palácio de Friburgo deslumbrava pela imponência, conforto e variada coleção de objetos de arte; abrigava museu e biblioteca e possuía salas de estudo e de música. Nos seus belos jardins, franqueados ao público nas tardes de verão, realizavam retretas as bandas militares dos regimentos holandeses.
Assim estimulados, desenvolveu-se entre os pernambucanos o gosto pela música. Conforme narra Cunha Barboza, celebravam-se festas e atos religiosos com boa orquestra. Possivelmente também com órgão, pois este instrumento existia nos conventos de Olinda desde o séc. XVI, e, mesmo supondo que tivessem sido danificados ou até destruídos no momento da invasão, assim como se transportaram materiais das ruínas das igrejas e mosteiros de Olinda para a Ilha de Antônio Vaz, onde foram utilizados na construção da Cidade Maurícia, poderiam ter sido recolhidos e restaurados esses órgãos, pois não haveria de faltar entre os colonos holandeses quem o pudesse fazer, de vez que artesãos de todos os ofícios foram trazidos para o Brasil e, na época, era a Holanda um importante centro de notáveis organistas e fabricantes de órgãos. Além destas probabilidades é muito possível que Nassau, ou mesmo alguém antes dele, houvesse importado da Holanda órgãos para as igrejas reformadas do Brasil, pois que, naquele país, jamais os crentes reformados consentiram em suprimir o uso litúrgico desse instrumento, apesar da recomendação de Calvino no sentido de abolir das igrejas a música instrumental (até mesmo o órgão) e de ser adotado exclusivamente o canto em uníssono a cappella [9].
Nassau fez construir na Cidade Maurícia um grande templo protestante, perto do Paço Municipal, cujo plano foi traçado pelo arquiteto Pedro Post, sendo o Rev. Francisco Plante o seu capelão [10]. Expediu um decreto tornando obrigatória a guarda do domingo. Cristão convicto e fervoroso [11], jamais deixou de comparecer aos cultos evangélicos e, verdadeiro príncipe em atitudes e realizações, fez questão de manter no Brasil a liberdade religiosa durante o seu governo, apesar das circunstâncias adversas que acabaram por desgostá-lo e reconduzi-lo à Europa. Embora a religião oficial fosse o Culto Reformado, permitiu o exercício do Catolicismo Romano bem como as celebrações judaicas nas sinagogas. Dessa liberdade nos oferecem comprovantes vários historiadores, inclusive ao referir os fastos musicais de cerimônias católico-romanas realizadas durante o domínio holandês em Pernambuco, dos quais podem citar-se dois exemplos.
No Mosteiro de São Bento em Olinda, informa Pereira da Costa, realizaram-se solenes exéquias com “toda a capela de música e os seus acordes instrumentos”, em 1641, por ocasião do falecimento do sargento-mor Pedro de Arena que, da Bahia, fora ao Recife em embaixada enviada ao Príncipe Maurício de Nassau pelo Vice-rei do Brasil, D. Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão. Narra o mesmo autor que, em 1646, João Fernandes Vieira, senhor de vastos cabedais e elevada posição social, celebrou com solenidade a festa de Santo Antônio, na capela do seu engenho de São João da Várzea, na qual tomaram parte “os melhores músicos da terra, que cantaram a três coros, havendo missa, sermão e extremada música”.
Claro está que, no tocante à música sacra evangélica, o elevado nível ali observado em todas as esferas da atividade humana não poderia ser desmerecido. Moldando-se a música eclesiástica da Colônia pela da Metrópole, torna-se necessário esclarecer que a hinologia flamenga repousa sobre a tradição dos corais de Lutero e dos Salmos musicados de Calvino, pois a Reforma penetrou nos Países Baixos através de pregadores luteranos, tendo seus primeiros mártires queimados vivos em Bruxelas, em 1523, merecido a honra da composição de um coral comemorativo por Lutero; vulgarizaram-se depois as doutrinas de Calvino e, consequentemente, se difundiu o uso dos Salmos. Embora não tenha a história registrado quais os Salmos e corais preferencialmente cantados no Brasil holandês, pode-se afirmar, com base na tradição neerlandesa e em referências respingadas nos historiadores, que essas duas manifestações evangélico-musicais estiveram aqui presentes e foram cultivadas pelos invasores e pelos portugueses, nativos e escravos que lhes sofreram a influência.
[1] — Gilberto Freyre. Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife. 2ª edição. Coleção Documentos Brasileiros n.° 34. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora. 1942, p. 37.
[2] — Pedro Souto Maior. “A religião christã reformada no Brasil, no séc. XVII” [Actas dos synodos e classes do Brasil, no séc. XVII, durante o domínio hollandez] (Rev. do Inst. Hist. e Geogr. Brasileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1915. Tomo especial consagrado ao Primeiro Congresso de Historia Nacional, vol. 1. p. 709–780). Essas “Actas” foram transcritas por Domingos Ribeiro em A Tragédia de Guanabara p. 89–155.
[3] — Hermann Wàtjen. O dominio colonial hollandez no Brasil. Trad. de Pedro Celso Uchôa Cavalcanti [do original alemão Das Hollandische Kolonialreich in Brasilien. Gotha, F. Andreas Perthes A. G., 1921]. Brasiliana Vol. 123. São Paulo. Cia. Editora Nacional, 1938, p. 392
[4] — Encontramos sua perspectiva em duas estampas da obra de Gaspar Barléu (História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício Conde de Nassau etc. Trad. e anotações de Cláudio Brandão. Segunda edição. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940) sob a designação Templum Gallicum (p. 206 e 246). Cf. Arquivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pasta relativa à Igreja do Espírito Santo em Recife, bairro de Santo Antônio, onde se encontra a cópia dos Inéditos de F. A. Pereira da Costa existentes na Biblioteca de Pernambuco, que versam o assunto [N. da A.].
[5] — Gilberto Freyre, Loc. cit.
[6] — José António Gonsalves de Mello Neto. Tempo dos Flamengos. Influência da Ocupação Holandesa na Vida e na Cultura do Norte do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros nª 54. Rio de Janeiro e São Paulo, José Olímpio Editora, 1947, p. 264.
[7] — Caspar Barleus. Rerum per octennium in Brasília et alibi nuper gestarum suh praefectura Illustrissimi Comitis J. Mauritii Nassaviae… Amsterdam, J. Blaeu, 1647. Uma segunda edição, com acréscimos de Piso, apareceu em Clèves em 1660. Esta obra foi traduzida para o alemão e para o holandês; a tradução portuguesa anteriormente citada (Gaspar Barléu. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes) , já na segunda edição, foi promovida pelo Ministério da Educação [N da A.].
[8] — Johan Nieuhofs. Gedenkweerdiçc Brasiliaense Zee eu Lant Reize Amsterdam, Jacob van Meurs, 1682. Esta obra acha-se traduzida para o português: Joan Nieuhof. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. Trad. da versão inglêsa por Moacir N. Vasconcelos com anotações de José Honório Rodrigues. São Paulo, Livraria Martins, 1942.
[9] — Isaac Piccard. “La Mvsique dans le Culte Protestant” {Encyclopédie de la Musique… Deuxième partie: Technique}, Vol. 4, p, 2429.
[10] — Domingos Ribeiro. Origens do Evangelismo Brasileiro. p. 123.
[11] — Gaspar Barléu. Oh. cit., p. 368: “De tôdas estas cousas, nenhuma teve o Conde (Nassau) por maior que a religião, nenhuma mais sublime que a fé. No govêrno delas de tal modo se distinguiu que, na diversidade das crenças, conquanto professava publicamente a sua, isto é, a verdadeira, manteve-se equitativo em relação às outras e não impôs aos súditos, com éditos minazes, a forma do culto divino que abraçara, mas deixou-a pura qual a encontrara, ou a ela os atraiu plàcidamente.”
Fonte: BRAGA, Henriqueta Rosa Fernandes. Música Sacra Evangélica no Brasil. Rio de Janeiro: Kosmos Editora, 1961.