A Crise das Cidades
por Wolf Von Eckardt
Como disse o urbanista Edmund N. Bacon, “é espantosa a falta de imagem hoje em dia do que a cidade americana poderá vir a ser”. E concordo que isso é, em grande parte, a falha da Arquitetura moderna.
Com os nossos programas de renovação e demonstração urbanas, estamos agora começando a gastar relutantemente algum dinheiro e energia no melhoramento do nosso lugar para viver. Mas não temos um conceito claro de como queremos viver, de como queremos que nossas casas, bairros e cidades desenvolvam-se fisicamente, de onde e como viveremos e trabalharemos e de que maneira estas áreas relacionar-se-ão entre si e com a Natureza.
“Um plano”, diz Bacon, “baseado nessas realidades tem de ser o ponto de partida – a estrutura dentro da qual podem ocorrer as interações sociais, políticas e econômicas necessárias ao desenvolvimento criador de uma sociedade urbana.”
Acontece que Bacon apresentou um plano assim para dar uma aparência nova e distinta a sua velha cidade natal, Filadélfia. Como resultado, as interações necessárias realmente ocorreram; não só porque o povo e os líderes de Filadélfia foram convencidos pelos padrões de tráfego que ele propôs ou pelas suas estatísticas econômicas. Eles estavam intrigados por um modelo tridimensional de novos prédios, ruas e avenidas propostos e que já havia sido criado em 1947. Mais de 385.000 pessoas de Filadélfia, inclusive todos os escolares, foram conhecer a visão de “Uma Filadélfia Melhor” projetada por Vincent G. Kling, Oskar Stonorov e outros, e que Willo von Moltke e outros mais tarde aprimoraram e aperfeiçoaram. No final, o que os intrigava era uma visão estética, um conceito físico, algo que as pessoas podiam ver e com o qual podiam identificar-se. Era Arquitetura.

Tendo conseguido uma espécie de consenso estético, Bacon e seus planificadores puderam realizar algumas coisas na Filadélfia. Nos últimos anos, foi a primeira cidade a reconstruir o seu centro, e embora outras cidades a tenham imitado, ainda é pequena a ideia do que nossa arquitetura deveria ser e fazer por nós. Não confiamos muito nela, pelo menos não o bastante para aceitar o plano físico como o ponto de partida e a estrutura dentro da qual podem ocorrer as interações sociais, políticas e econômicas. Na verdade, muitas vezes temos a impressão de que estamos longe de ter uma arquitetura que, a menos que apareça um Bacon, nem sequer compreendemos o quanto necessitamos dela.
Muitos urbanistas afirmam que projeto, arquitetura e estética não nos deveriam preocupar muito. Eles dizem que os impedimentos à habitabilidade são problemas que a Política, a Economia, a Ciência e a Tecnologia têm de resolver. Sua própria contribuição à solução está dedicada principalmente à adivinhação urbana. Eles profetizam megalópoles e ecumenópoles intermináveis e esparramadas grandes extensões pontilhadas de megaestruturas alveoladas, entrecortadas por autoestradas radarmáticas que se elevam em paisagens daliescas e povoadas de robôs felizes que não falam mas se comunicam por videofone e computador.
Isso seria um divertimento inofensivo se eles não nos dissessem que esses voos da imaginação para as visões fantásticas da não-cidade do amanhã curarão os males de hoje. Mas não curarão.
Naturalmente, é verdade que os adivinhos afirmam que a tecnologia está modificando o mundo e que temos de viver com a mudança. Mas o homem não tem mudado; ele ainda respira, come e faz amor de maneiras desesperadamente ultrapassadas. Ele ainda deseja vagar pelos campos e bosques e nadar em lagos e rios. Ele ainda anseia viver com a tribo e ser parte dos seus ritos e atividades. E ainda quer dar ao seu lugar para viver aquela distinção pessoal que às vezes o faz sentir-se partícipe. O primeiro movimento Moderno na Arquitetura compreendeu isso. Embora atualmente suas caixas de vidro no Estilo Internacional tenham má reputação, essa revolução tinha todas as ideias certas. Ela previu, na verdade antecipou, a maioria dos problemas urbanos que hoje nos atormentam. Pode-se afirmar que Le Corbusier em seu Toward a New Architecture propôs evitar os distúrbios de Watts 40 anos antes da sua ocorrência.
Com grande idealismo, os cruzados funcionalistas, como alguém os chamou, declararam que uma união entre a Arte e a Tecnologia, realizada no espírito do interesse social, criaria uma nova estética. Esta não seria um “estilo”, embora fosse isso o que veio a ser, mas uma forma nova, limpa, honesta e salutar de todas as coisas feitas pelo homem que criaria uma nova, limpa, honesta e salutar Wohnkultur, como os alemães a chamam, a moderna cultura de viver. Todas as coisas, desde a xícara que usamos até a cidade onde vivemos, deveriam ser funcionais num sentido científico e tecnológico, e, assim, tudo, do café da manhã a uma esticada na cidade à noite, seria uma experiência feliz e significativa num novo mundo de ciência e tecnologia.
Eles têm criado inúmeras obras de arte, como a Bauhaus, de Walter Gropius, em Dessau, o Pavilhão Barcelona, de Mies van der Rohe, e a Villa Savoye, de Le Corbusier, de Poissy, perto de Paris. Esses prédios realmente continuam a promessa emocionante de, ao mesmo tempo, expressar e moldar um modo de vida em modificação numa nova era de relatividade e valores relativos. Isso teve profunda influência na nossa Arquitetura atual, mas não uma influência penetrante.
Hoje, passada uma geração, esses prédios ainda são considerados peças de museu de vanguarda, experiências interessantes que estão fora do fluxo principal da nossa cultura. A promessa da nova Arquitetura de “dar beleza e unidade ao caos do nosso tempo”, como Gropius definiu sua missão, permanece irrealizada. A nova Arquitetura tem muito pouca influência sobre nosso modo de vida; ela não deu ao nosso lugar para viver a distinção pessoal que nos deixaria à vontade, felizes e criativos.
Isto não quer dizer que a Arquitetura atual não seja criativa. Vivemos numa época maravilhosamente emocionante e muito ativa. Como nossa arte, nossa Arquitetura reflete essa emoção e energia, mas ela perdeu a sua direção.
Não se pode ter direção se não se tem um objetivo. Como sempre, agora a Arquitetura progride com as principais correntes da arte. A arte de hoje, por sua vez, por estar frustrada pela complexidade e relatividade do mundo, procura significado não no que apresenta, mas no “processo” da apresentação e na experiência pessoal mais íntima. Isso muitas vezes é belo, é parte do nosso tempo, mas não é todo ele.
Se, como deveria fazer, a Arquitetura quiser dar aquele algo extra a caverna, ela tem de preocupar-se com algo mais do que monumentos para os eleitos. Não estou dizendo que daqui por diante todo arquiteto deve projetar apenas programas de habitação popular. Mas os arquitetos tampouco deveriam ter-se afastado tanto dos objetivos originais da Arquitetura moderna. A essência do gótico era a sua espiritualidade religiosa, a da Renascença foi o iluminismo. Os pioneiros modernos viram que entramos numa era de percepção social. Nossa própria inventiva nos obrigou a reconhecer que todos nós, como disse Adlai Stevenson em seu último discurso, “viajamos juntos numa pequena espaçonave que depende dos seus suprimentos vulneráveis de ar e solo”.
A razão por que a Arquitetura parece ter perdido sua consciência, parece-me, é que a revolução arquitetônica do século xx cometeu três grandes erros:
O primeiro foi o fracasso em aproveitar plenamente a tecnologia moderna, um dos seus objetivos básicos. Basta olhar os métodos primitivos, comparados com a produção automatizada de um automóvel, por exemplo, com que ainda se constrói um arranha-céu arrojado, ou então uma simples casa. Veja quantos telhados, sem falar de banheiros, ainda têm infiltrações até que sejam consertados vezes sem conta depois de muitos pedidos aos empreiteiros relutantes. Pense como é absurdo que ainda não tenhamos encontrado um meio simples de pendurar um quadro na parede de uma casa moderna sem quebrar o reboco ou o prego, e que ainda tenhamos de pintar nossos interiores a cada três anos e com despesas cada vez maiores. Como o arquiteto Raymond Reed observou, a Medicina tem aumentado nossa longevidade, e a Agricultura ampliado marcantemente a produtividade e o valor, enquanto a Arquitetura apenas tem reduzido a produtividade e elevado os preços. Nossos bisavós pagaram a casa da família em três anos; nós, embora vivamos numa era de produção tecnológica, temos sorte se conseguirmos um financiamento de trinta anos. A maioria pode dar-se a esse luxo. Mas em duas décadas opulentas depois da depressão e da guerra, quase um quarto do país ainda está morando mal. Temos suprido muito mais gente com bons automóveis e aparelhos de TV do que com boas casas.
O segundo fracasso foi o de prover a continuidade histórica. Nas palavras de Henri van de Velde, um dos padrinhos da Arquitetura moderna, ela começou como “uma revolta contra as falsificações de formas e contra o passado… uma revolta moral”. Em seu zelo em começar do nada, as primeiras escolas de Arquitetura moderna, sob a influência da Bauhaus, proibiram o ensino da história da Arquitetura com medo de corromper seus estudantes. Quando o movimento moderno jogou fora a água do banho do ecletismo desonesto, ele também deitou fora – ou o tentou durante muito tempo – o filho da herança cultural do homem. Ele se esqueceu da segurança psicológica que as formas familiares e tradicionais nos oferecem. As pessoas querem que uma casa se pareça com uma casa, e uma igreja, com uma igreja. Todavia, não havia nada da Villa Savoye que dissesse a um bom sapateiro em Poissy que essa estranha caixa sobre estacas fosse um lugar para viver, e nem que ela fosse mais confortável do a sua casa tradicional.
Ultimamente, o Funcionalismo na Arquitetura tem sido substituído por um ressurgimento do Expressionismo. Admito que os termos são arbitrários, embora convenientes. Mais adiante neste livro tentarei distinguir as coisas. É evidente que uma avaliação séria da nossa Arquitetura atual terá de esperar até que os tapumes sejam derrubados e que a poeira tenha assentado. Só então é que poderemos rotular inteligentemente as novas formas ou ganhar o fascinante jogo de detetives dos historiadores da arte sobre quem influenciou a quem e por quê.
Mas não é cedo demais para afirmar que, quer venhamos a decidir ou não por um estilo arquitetônico geralmente aceito para o nosso tempo, devemos ter, pelo menos, uma certa ordem e harmonia visuais. Todos os arquitetos e urbanistas falam disso. Mas o novo, indisciplinado e abstrato Expressionismo ou o kitsch dos prédios embrulhados em talas, como se fossem presentes, não é mais capaz de levar-nos a ele do que o velho e excessivamente disciplinado Funcionalismo da caixa de vidro. Nenhum dos dois respeita a tradição e a continuidade que as pessoas procuram em seu lugar para viver.
Fonte: VON ECKARDT, W. A Crise das Cidades. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.